O Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.760.009-SP, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, tratando de pedido de repetição do indébito – ou seja, de devolução do tributo pago indevidamente em favor de um determinado município – acabou por reforçar uma posição já conhecida da doutrina e jurisprudência, mas que insiste em ser desobedecida por diversos municípios da Federação.
A questão envolve o ITBI – Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, tributo que incide sobre a transferência de imóveis inter vivos, ou seja, não decorrente de um processo de sucessão por morte. E o ponto específico diz respeito ao momento em que deve ocorrer o seu recolhimento em operações societárias tais como fusão, cisão, incorporação, integralização de capital etc.
De um lado, os contribuintes entendem, com respaldo na doutrina e na própria jurisprudência, que somente quando do registro da alteração da propriedade junto à matrícula do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis (CRI) torna-se devido o recolhimento deste tributo municipal.
Muitos municípios, porém, impõem seu recolhimento no momento do registro do ato societário perante as juntas comerciais. Chegam, inclusive, a exigir uma espécie de declaração de operações societárias que modificam a propriedade do imóvel e consignam um prazo para seu pagamento a partir da operação, aplicando penalidades como multas moratórias e juros quando o contribuinte não obedece este prazo.
No julgamento referido no início, o Superior Tribunal de Justiça deixa claro que o fato gerador do ITBI somente ocorre quando do registro imobiliário, independentemente de quando foi realizada a operação societária. No site deste Tribunal, nas “Informações do Inteiro Teor” do Recurso Especial supracitado, a Corte é clara ao afirmar:
O STJ entende que mesmo em caso de cisão, o fato gerador do ITBI é o registro no ofício competente da transmissão da propriedade do bem imóvel, em conformidade com a lei civil, o que no caso ocorreu em 2015. Logo, não há como se considerar como fato gerador da referida exação a data de constituição das empresas pelo registro de Contrato Social na Junta Comercial, ocorrido em 2012.
Este julgamento, a bem da verdade, fica em linha com o que dispõe o próprio Código Civil de 2002, que em seu artigo 1.245 dispõe:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
§2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.
A celeuma neste caso tem como base a interpretação literal e redutiva dos termos “título translativo” e “o alienante” constantes no parágrafo primeiro do artigo citado.
Há, especialmente por parte dos fiscos municipais, defesa no sentido de que em algumas operações societárias, tal como numa cisão parcial, por exemplo, não há alienação “stricto sensu” de bens. Por conseguinte, não há que se falar em registro do título translativo decorrente da alienação como fato gerador do ITBI.
Neste caso, defendem, aplicar-se-ia o artigo 229 da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76) que traz o conceito legal de cisão. Segundo este dispositivo, a cisão é a operação em que uma sociedade transfere, total ou parcialmente, seu patrimônio para outra (cisão parcial) ou para outras (cisão total). E esta transferência ocorre justamente com o registro do ato societário no órgão competente, ou seja, nas juntas comerciais. Por conseguinte, este registro do ato societário, na medida em que representa a transferência do patrimônio de uma sociedade a outra, seria bastante e suficiente para fazer nascer a obrigação de pagamento do ITBI.
Ocorre que, muito embora a legislação societária regule, de fato, os procedimentos das operações que lhe são próprias (cisão, fusão, incorporação etc.), a transferência dos bens que pertencem ao patrimônio de uma ou outra sociedade deve seguir a legislação civil, que regula o instituto da transferência de bens móveis (pela tradição) e de bens imóveis (pela transcrição no CRI) para toda e qualquer situação – não apenas para as operações societárias.
A legislação deve ser interpretada de forma sistêmica. O registro do ato societário na junta comercial é procedimento afeto à troca titularidade da pessoa jurídica. Não há dúvida de que, sob um aspecto consequencial, há também a mudança do patrimônio a ela pertencente. Mas, o registro e controle da propriedade de bens imóveis – por expressa disposição da norma civil (que não conflita de forma real ou mesmo aparente com a legislação societária) é realizado através do registro cartorário.
Isso equivale dizer, que toda e qualquer legislação que busque atrelar a incidência do ITBI ao registro da operação societário ofende o Código Civil de 2002 e a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na medida em que altera o elemento material da hipótese de incidência do ITBI e afronta a regra de competência nela prevista.
Portanto, na esteira do que já defendia a doutrina especializada e conforme outros precedentes agora corroborados por este julgamento de abril de 2022, não restam dúvidas de que a exigência do ITBI em operações societárias que importem na transmissão de propriedade imobiliária somente ocorre quando do registro do ato societário (que, na maioria das vezes, dispensa a lavratura de escritura pública) no cartório de registro de imóveis.
Registre-se, por fim, que muito embora esta decisão possa refrear a postura de vários municípios que insistem na cobrança “antecipada” do ITBI em operações societárias, o não registro do ato societário para fins de consolidação da alteração da propriedade imobiliária traz algumas outras implicações e riscos, especialmente pelo fato de o imóvel permanecer sob registro do antigo proprietário – o que pode acarretar, por exemplo, uma penhora indevida sobre este bem.
Justamente em função disso, toda e qualquer estratégia deve ser minuciosamente estudada, visando evitar problemas futuros ou implicações tributárias indesejadas.