Patrícia Gomes
Advogada da Equipe Tributária JCM
A Medida Provisória nº 881 de 30 de abril de 2019, que foi convertida na Lei nº 13.874/19, instituiu a chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e trouxe garantias de livre mercado, conforme determina o artigo 170 da Constituição Federal de 1888[1].
Em sua exposição de motivos, esta demonstrou ter como objetivo principal garantir a liberdade econômica, afastando a ideia de que no Brasil, para que alguma atividade econômica seja exercida, são necessárias a permissão e a regulamentação de um Estado fortemente burocrático. Para o legislador, a alta intervenção do Estado afasta o país do desenvolvimento, desestimula o crescimento das empresas e, consequentemente, a geração de empregos, renda e desempenho da economia.
Com o intuito de concretizar o “livre mercado”, a Lei da Liberdade Econômica modifica diversos textos legais, merecendo destaque a alteração promovida no artigo 50 do Código Civil, dispositivo que trata da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica nos casos em que ocorre sua utilização abusiva.
Para analisarmos as principais alterações dessa norma e as consequências destas, inicialmente, traz-se a redação do artigo 50 caput, antes das modificações feitas pela Medida Provisória. Veja-se:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica.
O Código Civil adotou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Isso significa que, para que haja a desconsideração, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, por qualquer um dos administradores ou sócios, deve estar bem caracterizado.
Ademais, também é requisito para haver a desconsideração, o descumprimento de uma obrigação ou a ocorrência de insolvência. Ou seja, o Código Civil havia adotado uma linha objetiva, dispensando a prova do dolo específico dos sócios ou administrados para efeito de desconsideração da pessoa jurídica.
Já a nova redação do caput dessa mesma norma, passou a viger com o seguinte texto:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
A diferença entre a redação anterior do caput do artigo 50 e a vigente, foi a criação da obrigatoriedade de os sócios ou administradores terem sido beneficiados de forma direta ou indireta pelo abuso da personalidade jurídica, não bastando constatar a presença dos requisitos básicos da desconsideração já mencionados, que eram trazidos pela redação anterior: (i) abuso da personalidade, (ii) desvio da finalidade, (iii) confusão patrimonial e (iv) descumprimento de obrigação.
Portanto, os efeitos da desconsideração repercutirão apenas àqueles que, em razão da prática de ato ilegal, foram beneficiados. A alteração legislativa é bem vinda, porquanto a desconsideração da personalidade jurídica consiste, de fato, numa espécie de sanção, uma punição imposta pela ordem jurídica ao sócio ou ao administrador que se vale indevidamente da prerrogativa da separação patrimonial atribuída às pessoas jurídicas.
Também foram acrescentados no artigo 50 do Código Civil cinco parágrafos, merecendo destaque a redação dos parágrafos 1°, 2° e 4º.
O § 1° do artigo 50 do Código Civil conceitua desvio de finalidade e preconiza a necessidade de ter havido dolo nos atos praticados pelos administradores e sócios, para que sejam responsabilizados pelas práticas ilícitas que resultarem no descumprimento de obrigação com credores. Veja-se:
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza
Portanto, é ônus do credor, além de comprovar o beneficiamento dos sócios e administradores com o desvio de finalidade patrimonial referido na norma, também demonstrar a existência do dolo em tal conduta.
Tal previsão veio ao encontro do posicionamento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de ser necessária a comprovação de ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial[2].
Com o intuito de garantir o devido escólio dos conceitos que preceituam essa norma, evitando interpretações equívocas dos institutos, o § 2° do artigo 50 do Código Civil, nos mesmos moldes do § 1º, conceitua as hipóteses de confusão patrimonial. Veja-se:
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente e insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
A redação desse parágrafo, ao tratar da confusão patrimonial, exige “cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador” e, mesmo no caso de transferência de ativo entre sócio e sociedade, impede a desconsideração se o valor for “proporcionalmente insignificante”, isso porque, o beneficiamento de que trata o caput deve ser concreto, afastando situações em que a mistura do patrimônio seja irrelevante.
Destacamos também a redação do § 4º do artigo 50 do Código Civil, que traz a seguinte previsão:
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
O novo regime prevê que a formação de grupos de empresas, por si só, não autoriza a desconsideração. A interpretação desse parágrafo deve ser realizada de forma análoga à conferida pela doutrina e pela jurisprudência no caso de responsabilidade solidária entre as empresas que compõem grupo econômico, no que tange a débitos tributários.
Isso porque o inciso I, do artigo 124, do Código Tributário Nacional, prevê que “são solidariamente obrigadas as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”, enquadrando-se nessa hipótese os grupos econômicos.
O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que o fato de empresas pertencerem ao mesmo grupo econômico não é suficiente para resultar na solidariedade entre estas quanto ao pagamento de tributo devido por apenas uma delas. Portanto, realizando uma interpretação extensiva da norma tributária, é possível compreender a lógica sistêmica que norteou a redação do § 4°, concluindo-se que a responsabilização das empresas não pode ser presumida.
Por fim, destaca-se que o novo regime traz também os parágrafos 3º e 5º, cujas redações são tão claras que dispensam maiores especificações. Veja-se:
§3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Dessa forma, evidenciada a importância da liberdade econômica, sendo um fator necessário e preponderante para o desenvolvimento e crescimento econômico do país.
Ademais, do que se pode depreender das alterações do artigo 50 do Código Civil, trazidas pela Lei nº 13.874/19, o legislador teve o intuito de privilegiar a autonomia patrimonial das empresas, tornando as hipóteses de aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ainda mais restritas, somente permitido em casos excepcionais.
[1] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[2] REsp 1.325.663/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 11/06/2013.