Trabalhadores têm recorrido ao Judiciário para tentar derrubar demissões por justa causa aplicadas por um motivo inusitado: a colocação dos seus números de CPF – ou de familiares – em cupons fiscais de clientes para a obtenção de créditos do Programa Nota Fiscal Paulista, que devolve até 20% do ICMS recolhido pelo estabelecimento comercial ao consumidor. Os empregadores consideram a prática como falta grave, por fraudar vendas, e em muitos casos têm conseguido em segunda instância manter as dispensas motivadas.
Muitos casos são descobertos após reclamações de clientes, que percebem outro CPF nas notas fiscais ou não localizam os documentos no sistema do programa paulista – o que pode resultar em multas para os estabelecimentos comerciais.
O valor da penalidade é alto: R$ 2.355,00 por cupom (100 UFESPs – Unidades Fiscais do Estado de São Paulo). “É tentador para o trabalhador. Mas temos como identificar potencial fraude de consumo”, diz o coordenador do Programa Nota Fiscal Paulista, Carlos Ruggeri. “Uma pessoa não pode almoçar três vezes em um dia”, exemplifica.
O prejuízo para o empregador pode ser grande. Em um dos casos analisados pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Campinas (15ª Região), uma funcionária de uma rede de óticas chegou a emitir 884 cupons fiscais com seu CPF e de seus familiares – pai e dois filhos.
A trabalhadora tentou reverter a justa causa. Porém, sem sucesso. O desembargador Thomas Malm, da 8ª Câmara, concluiu que o procedimento era proibido e que “a reclamante tinha ciência da ilicitude cometida”. “Diante dos elementos constantes dos autos, tem-se que a reclamante [ trabalhadora] atuou de forma ímproba, ao, confessadamente, registrar os números de seu CPF e de seus familiares em notas fiscais emitidas na empresa reclamada, visando obter vantagem indevida no programa Nota Fiscal Paulista”, diz no acórdão. A decisão foi unânime.
Em outro caso, julgado pelo TRT de São Paulo (2ª Região), o relator, desembargador Manoel Antonio Ariano, da 14ª Turma, entendeu que os lançamentos indevidos realizados por um funcionário de uma loja on-line “causaram, de fato, prejuízos tanto na esfera tributária quanto na consumerista, uma vez que, deixando-se de colocar o CPF do real cliente, frauda-se uma venda e atinge-se o consumidor”.
O fato, acrescenta no acórdão, configurou falta grave, “ensejando a rescisão do contrato de trabalho por ato de improbidade, nos termos do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”. O voto do relator foi seguido à unanimidade.
Porém, nem sempre a justa causa é mantida em segunda instância. Ao analisar o caso de um ex-funcionário de uma rede de lojas, os desembargadores da 4ª Câmara do TRT de Campinas entenderam que os pequenos valores obtidos aos longo de cinco anos não justificariam uma punição tão pesada.
O relator do caso, desembargador Manoel Carlos Toledo Filho, chegou a fazer um cálculo de quanto o trabalhador teria recebido – um total de R$ 459,02 – e concluiu que os valores “reforçam a conclusão pela desproporcionalidade da punição [justa causa]”. Para ele, bastaria uma suspensão, “com os correspondentes descontos”.
Apesar dos pequenos valores envolvidos, alguns casos acabam sendo levados à esfera criminal. E o trabalhador pode ser condenado. Foi o que ocorreu recentemente com um vendedor de uma ótica de Campinas, que inseriu seu CPF em 27 notas fiscais de clientes e foi demitido por justa causa.
A prática foi descoberta após a reclamação de um cliente que, ao conferir o cupom fiscal, percebeu que o CPF não era o seu. Voltou à loja e exigiu a emissão de um novo. Em primeira instância, o trabalhador havia sido inocentado. Porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reverteu a decisão, condenando-o por estelionato e falsidade ideológica.
Os desembargadores da 3ª Câmara de Direito Criminal levaram em consideração, entre outros argumentos, que “a inclusão de dados falsos nos documentos fiscais sujeitou o empregador à penalidade administrativa (multa) prevista no artigo 7º da Lei nº 12.685/2007 [que criou o programa Nota Fiscal Paulista]. E condenaram o vendedor à pena de dois anos, quatro meses e 26 dias de reclusão em regime aberto, mais multa. A pena, porém, foi substituída por prestação de serviços à comunidade.
Advogados entendem que, independentemente dos valores envolvidos, a conduta é grave e quebra a relação de confiança entre trabalhador e empregador. “A pessoa é responsável por cuidar do caixa. Configura ato de improbidade e é um crime”, diz a advogada Caroline Marchi, sócia da área trabalhista do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, acrescentando que, após tomar conhecimento do problema, a empresa deve agir rapidamente. “Para não configurar perdão tácito.”
Fonte: Valor